A autoconfiança da mulher que se descobre negra
Um processo que nunca acaba, por muitos anos que passem
Artigo original publicado a 16 de outubro de 2020
Revisões feitas a 8 de julho de 2025
Acredito que o processo seja diferente para cada tom de pele. Nunca fui uma mulher branca para saber como é que o seu processo de auto-descoberta a impacta, nem tão pouco como é que os seus níveis de auto-estima permitem-na deambular pelo mundo. No entanto, sou uma mulher negra que se insere numa sociedade que ainda não a aceita na íntegra, questionando todo o seu potencial, condicionando o seu lugar e tentando moldá-la numa pessoa que ela não é… Pelo menos, que ela não pretende ser.
As últimas semanas têm sido uma azáfama mental.
Estaria a mentir se dissesse que não passei a estar incomodada com os acontecimentos dos últimos dias1, mesmo que sejam similares a tantos outros do passado. O facto de os problemas virem ao de cima num momento de pandemia e as suas consequentes crises, tanto quanto o aglomerado de facetas que já não se escondem, leva-me, num registo diário, a questionar a mulher que sou. Todas as minhas características. Todos os meus talentos. Há dias em que me sinto perdida, tal como um tanto inadequada.
Uma vez que um conjunto de emoções me envolve, coloco em perspetiva a minha voz e com quem usá-la. Como usá-la. Questiono-me sobre quem serei eu enquanto aquela que te escreve, aquela que pretende criar e partilhar histórias. Inegavelmente, afasto-me dos núcleos que me são conhecidos, resguardo-me e perscruto, em virtude dos meus direitos enquanto humana, onde é que me encaixo. Não para que seja aceite, uma vez que nunca agradaremos a todos, mas antes para que garanta o meu espaço de ação.
Nesta busca por algo que fazer, de modo a que me seja possível investir nos meus objetivos, apanho-me a tecer reflexões que, outrora, nunca tinha considerado. Será que lerão o que tenho a dizer, quando se aperceberem que sou negra? Tirarão conclusões absurdas sobre as minhas capacidades? Colocarão em causa os meus sonhos? Estarei apta para tal? Sendo a lista interminável.
Analogamente, reconheço-me na pessoa que fui, mas noutras áreas da minha vida.
Até há pouco tempo, por exemplo, era-me impensável crer na possibilidade de conhecer alguém que quisesse partilhar uma história romântica comigo.2 Tudo porque, sem dúvida, e tocando na ferida, nunca pensei que a minha negritude pudesse ser alvo de apreciação. Jamais concebi a ideia de poder chamar a atenção de alguém, daí ter-se-me introduzido a auto-confiança negra.
Porquê, especificamente, negra?
Por ser a única realidade que consigo explorar, no corpo e na pele – livre de redundâncias – que possuo. A auto-confiança é um acumular de experiências que vamos vivendo, uma pedra que se talha com o passar do tempo. O cume das montanhas molda-se pelas ações dos ventos, das chuvas, do calor do sol.
A nossa auto-confiança é resultado das lágrimas que nos preenchem o rosto, das risadas que nos aquecem a alma, dos lugares que exploramos, das pessoas com as quais partilhamos e construímos universos. Menciono as dating apps por terem sido um dos temas de conversa num dos episódios do meu podcast e por me terem obrigado a aprofundar esta questão da autoestima. É, portanto, um vértice de um iceberg existencial. Sentei-me para refletir, de igual modo, por andar a tirar alguns retratos ao sol nos últimos dias.
Anteontem, particularmente, com o meu cabelo natural.
Desabafei na legenda o facto de ter passado a intulá-lo de “coroa”, em alusão a um elogio por parte de uma amiga. De igual modo por, por muitos anos, nunca o ter conseguido encarar como algo positivo em mim… Razão pela qual sempre preferi tranças. Aos poucos, tem sido possível desvincular uma coisa da outra, trabalhando por um equilíbrio saudável entre o que me faz sentir confortável, e não excluída ou julgada. Conforme o tempo se desenrola, torna-se inevitável não gostar cada vez mais do meu rosto, do meu corpo, da minha personalidade.3
Tem-se tornado imperativo trabalhar a força que vive em mim, estudar e compreender os sonhos que me habitam, dar-me a conhecer sem filtros ou receios. Se for para amedrontar o desconhecido, o adequado será parar de viver. Aliás, as melhores histórias são as que se baseiam na aleatoriedade dos terrenos que calcamos, nos planos que nos são trazidos pelo vento, nas memórias que vamos edificando… Viver esta auto-confiança – e que eu não pretendo que seja passageira -, traz ao de cima um conjunto de inseguranças por resolver, imensos questionamentos, dado que para se fortalecer, deve partir de algum lugar.
Medos sobem a costa, pois, o silêncio que lhes foi imposto é substituído pela voz que lhes dou.
Contudo, é com outra postura que os escuto: com vontade de os compreender e resolver. Sobretudo, com o intuito de os compreender! Com efeito, os fatores crescimento e amadurecimento são outros dois que me têm influenciado. Por intermináveis semanas, toda eu fui uma cápsula de dúvidas, ansiedades, desalento4… Entretanto, conforme a estação troca de roupagem, também eu decido quebrar certos ciclos e aventurar-me por outros de suma importância. Atrás de mim, na mochila que trago às costas, disponho de todas as doses de autoconhecimento, estima e confiança necessárias, para enfretar os desafios que me agraciarem pelo caminho. ♥
LER TAMBÉM: Guest Post Sobre Ser Negra, no blogue da Sofia Costa Lima
Referência ao caso do George Floyd.
Questão que se foi repetindo ano após ano…até ter conhecido o JR.
Ainda hoje, 8 de julho de 2025, conversei com a psicóloga sobre a vontade de melhorar a visão que tenho de mim mesma. Passaram-se 5 anos desde que escrevi este texto, prova de que a autoconfiança também se reflete nestes altos e baixos que são os oceanos da auto-percepção.
E ainda sou, não nos deixemos enganar.
Ainda hoje, alguém me falou sobre o "perigo" de se perder a identidade por causa do excesso de imigração. Fica tranquila porque em lado nenhum associei o teu texto a imigração. O que me interessa é a parte da identidade se associar a características étnicas, raciais ou nacionais. Nunca entendo o que é isso de uma identidade nacional quando se usa isso não num contexto histórico ou geográfico mas num contexto da composição genética de uma multidão que o acaso fez com que vivessem num espaço fictício comum (na natureza, as fronteiras políticas são uma ficção humana, que o digam as andorinhas). Tudo isto para dizer: é inquietante a forma como um determinado grupo atribui a si próprio a qualidade de poder debater as identidades de todos, nunca permitindo que a sua própria esteja em discussão. Um grupo de pessoas sente a sua identidade ameaçada por causa da identidade de outras pessoas, nunca questionando a sua própria identidade e como ela se transforma por si mesma. Não consigo dizer nada sobre a identidade de uma mulher negra. Não consigo dizer nada sobre a identidade de uma mulher branca. Até, sobre a minha própria, tenho dificuldade em dizer algo. Quem eu sou? O que me define? E, se descobrir algo que me defina, em que medida me define realmente? Sou homem branco. Por que motivo, o meu género ou o tom da minha pele parece tão irrelevante para me definir e, ao mesmo tempo, parece tão relevante para quem tem um género ou um tom de pele diferente do meu? Quando olho para mim, não me defino como "homem branco" porque nunca ninguém olhou para o facto de ser homem e de ser branco como relevante para quem eu sou. Tenho a certeza que se eu fosse mulher e negra, olharia para mim como mulher e negra por assim ser definido. Numa sociedade de mulheres negras, ser mulher negra é fator de questionamento identitário? Aí, seria um homem branco que seria definivel por essas características? Isto para refletir: até que ponto a nossa identidade e autoperceção é gerada pelo nosso olhar sobre nó próprios e até que ponto é gerada pelo olhar da maioria que nos rodeia?